O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal
Federal, disse nesta segunda-feira (15), em entrevista à BBC News Brasil, que a
Operação Lava Jato "apoiou a eleição de Jair Bolsonaro", "tentou
interferir" no resultado eleitoral e "agiu para perturbar o
país" durante a gestão de Michel Temer.
Perto de liberar para julgamento a ação em que
o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pede a anulação da sua condenação no
caso do Tríplex do Guarujá, Gilmar Mendes afirmou também que o ex-juiz federal
e ex-ministro da Justiça Sergio Moro "fez tudo o que não condiz" com
o que se espera da relação entre juiz e Ministério Público numa investigação
criminal.
O julgamento do recurso de Lula teve início em
dezembro de 2018 e foi interrompido por um pedido de vista de Mendes. Na época,
dois ministros chegaram a votar contra o pedido do ex-presidente: o relator
Luiz Edson Fachin e Cármen Lúcia. Segundo Mendes, o caso será liberado para
votação neste semestre.
Na ação, a defesa de Lula questiona a
imparcialidade de Moro e cita como uma das provas disso o fato de o juiz ter
aceitado ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro.
Moro foi o primeiro a condenar Lula, em 2017,
no processo em que o ex-presidente é acusado de ter recebido a propriedade de
um tríplex no Guarujá da empreiteira OAS como parte de propina em troca de
contratos da empresa com a Petrobras. Depois a condenação foi confirmada pelo
Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região e pelo Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
"A Lava Jato tinha candidato e tinha
programa no processo eleitoral", disse Mendes à BBC News Brasil.
"Primeiro a Lava Jato atua na prisão do
Lula. Prestes à eleição, a Lava Jato divulga o chamado depoimento ou delação do
Palocci, tentando influenciar o processo eleitoral. Depois, o Moro vai para o
governo Bolsonaro, portanto eles não só apoiaram como depois passam a integrar
o governo Bolsonaro", exemplificou o ministro.
Questionado se uma eventual anulação da
condenação de Lula não poderia gerar efeito cascata, beneficiando os demais
réus da Lava Jato, o ministro do STF disse que cada caso será analisado
individualmente.
Ele destacou, porém, que condenações que se
basearam na colaboração informal entre procuradores da Lava Jato e autoridades
estrangeiras podem ser reavaliadas. E disse haver "indicações de que houve
vícios nos acordos de delação premiada e induções de declarações" dos réus
na Lava Jato.
Sobre a pandemia de coronavírus, Gilmar Mendes
afirmou que, em parte, o elevado número de mortes se deve à ausência de
coordenação entre o Executivo Federal e governos estaduais, por causa de
"crenças que dominavam o governo federal", como a rejeição de medidas
de isolamento social.
Apesar disso, o ministro disse não achar que
seria "salutar" para o país abrir processos de impeachment contra o
presidente Jair Bolsonaro. Mais de 60 pedidos foram protocolados no Congresso
Nacional, mas a decisão sobre abertura cabe ao presidente da Câmara, Arthur
Lira (PP), aliado de Bolsonaro.
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Ministro, vamos começar falando de
Lava Jato. Qual a sua opinião sobre o fim da força-tarefa em Curitiba e a ida
das investigações para a Gaeco, que é o departamento de combate à corrupção da
procuradoria de justiça? É possível dizer que a Lava Jato morreu?
Gilmar Mendes - Não sei. Se nesse sentido se
pode dizer que ela morreu. Alguns colegas seus disseram que ela morreu de morte
assassinada. Eu digo que, pelos exageros que se vem divulgando, se houve esse
tipo de evento, talvez a gente deva dizer que ela cometeu suicídio.
Mas o que aconteceu é que o novo
procurador-geral achou por bem fazer uma integração institucional e evitar esse
trabalho de grupos autônomos, evitando aquilo que parece ter sido o mal da Lava
Jato, o total descolamento da estrutura institucional existente.
BBC News Brasil - Se houve, como o senhor diz,
um total descolamento da estrutura vigente, a PGR e o STF, como instituições de
resguardo da Constituição, não deveriam ter freado esses avanços de alguma
maneira há mais tempo?
Mendes - Eu acho que a PGR talvez não tivesse
naquele momento condições. Ela estava no mesmo ritmo da Lava Jato. Você vai se
lembrar que a PGR, naqueles anos anteriores, era gerida pelo procurador
(Rodrigo) Janot. Aquele que disse que sofria de vários problemas para a direção
de toda essa temática, inclusive do vício do alcoolismo. Então, a PGR não me
parece que era o órgão adequado.
E o Supremo recebia esses processos na medida
em que eles lá chegavam. Normalmente, ações dos réus e pedidos de abertura de
inquéritos por parte do PGR. Acredito que, em algum momento, foram sendo
colocados limites às chamadas prisões alongadas de Curitiba. Fomos discutindo
acordos, o modus operandi. Isso foi se dando no tempo.
BBC News Brasil - Então, o sr. não enxerga
falhas do Supremo na condução dos processos da Lava Jato?
Mendes - Não, acho que há falhas sim, há
falhas. Inicialmente o relator era o ministro Teori (Zavascki, morto em 2017) e
depois ficou responsável o ministro Fachin. Talvez aqui há falhas, talvez até
da distribuição dos processos. Saber se tudo deveria ter ido para Curitiba ou
se tudo que foi para Curitiba tinha a ver com corrupção na Petrobras.
Muitas discussões em torno desse assunto foram
sendo amadurecidas no tempo. Também os acordos eram matéria muito nova. Hoje já
aparecem indicações de que houve vícios nos acordos, vícios de vontade,
induções de declarações. Isso tudo não era acompanhado diuturnamente pelo
tribunal. A supervisão cabia à Procuradoria-Geral, que estava com graves
problemas de governança.
BBC News Brasil - O sr. especificamente faria
algo diferente olhando para trás nas decisões que tomou com relação à Lava
Jato?
Mendes - Não, não vejo porque ter alguma
decisão diferente. Fiquei vencido muitas vezes na turma em relação à matéria,
por exemplo, das prisões alongadas, no julgamento da turma. A turma decidia
manter as prisões… Prisões que muitas vezes resultavam em delações. Acho isso
errado. Isso precisa ser discutido. Mas foram as decisões que puderam ser
tomadas naquele momento.
BBC News Brasil - O sr. tem em mãos o processo
do ex-presidente Lula em que ele pede a anulação da condenação, alegando
parcialidade do juiz Sergio Moro. Que fatos relevantes ou graves o senhor
observa nesse caso?
Mendes - Há muita discussão sobre uma atividade
de promotor do juiz Moro. E a atividade de cooperação entre ele e a
força-tarefa, a condução proativa que ele fazia do processo, os limites que ele
impunha à defesa. E a defesa está tentando caracterizar tudo isso como
elementos de suspeição, a inexistência de um juiz imparcial.
É isso que vamos examinar. Agora surgiram essas
mensagens da internet e essa será uma possível discussão. Saber se isso
(mensagens vazadas entre procuradores e o juiz Sérgio Moro) pode ser utilizado
nesse processo.
Mas o que se vê claramente é uma cooperação
bastante grande entre o juiz Sergio Moro e o promotor. Moro, por exemplo,
pedindo para ter conhecimento antecipado sobre a denúncia, ou Moro dizendo que
uma determinada testemunha deve depor desta ou daquela forma. Ou que eventual apelação
à decisão dele deveria ser submetido a ele. Portanto, tudo o que de fato não
condiz com a relação entre promotor e juiz.
BBC News Brasil- Em caso de anulação da
condenação, qual o efeito disso para os outros processos envolvendo o
ex-presidente Lula e outros condenados na Operação Lava Jato?
Mendes - Isso terá efeito sobre esse caso que
está no Supremo, que é o caso do Tríplex. Qualquer outro debate ou discussão
terá que ser feito em processo próprio. Há muitas discussões sobre esse
assunto. Hoje, por exemplo, se fala numa cooperação internacional informal que
havia entre os membros da Lava Jato e determinados integrante de instituições
na Suíça e nos Estados Unidos, sem o devido processo legal. Saber se, nos casos
em que houve condenação, se houve essa cooperação, pode ser relevante para
esses casos também.
BBC News Brasil - O sr. já disse algumas vezes
considerar que o ex-juiz Sergio Moro comandou a Lava Jato. Se é fixado esse
entendimento no julgamento da ação de Lula, não é razoável supor que outros
réus possam encarar isso como uma oportunidade para pedir anulações de seus
próprios processos, criando uma cadeia de anulações?
Mendes - Acho que cada caso será um caso. E
isso terá que ser examinado. Acho que será examinado ao seu tempo e modo para
mostrar que havia um juiz não imparcial lá em Curitiba. Isso cada parte terá
que suscitar. Houve vários casos de acordos, cooperações, leniências. Há muitas
questões envolvidas. Eu prefiro me limitar a fazer análise casuística. Nós
estamos a analisar no Supremo o caso do Tríplex. Qualquer conclusão que
extrapole terá que ser analisada em outras instâncias ou vir para processos do
Supremo.
BBC News Brasil - Agora, para além da discussão
dos métodos, existem evidências que mostram a existência de um grande esquema
de corrupção na Petrobras com participação de empresários e políticos de peso.
No geral, qual o legado que fica da Lava Jato, considerando métodos e
resultado?
Mendes - Vamos ter que examinar o que ao fim e
ao cabo ficará em termos de resultado. Sem dúvida nenhuma a Lava Jato é uma
iniciativa importante num contexto de grave corrupção política. Isso é mérito
da Lava Jato e de outras operações de combate à corrupção. Mas a Lava Jato
pretendeu se tornar algo mais que isso. Pretendeu se tornar um movimento
político, senão até um partido político. Ela pretendeu fazer reformas
institucionais.
Você se lembra das chamadas 10 medidas contra a
corrupção, onde ela dizia que até mesmo prova ilícita deveria ser reconhecida
em determinados casos. Agora, o que se coloca sobre esse material (troca de
mensagens entre procuradores e Moro), esse produto do hackeamento é curioso,
porque eles (procuradores da Lava Jato) dizem que esses documentos não podem
ser utilizados porque resultam de prova ilícita.
Agora, muitas coisas mudaram. Por exemplo, a
proibição do financiamento de campanha com doação das empresas. Isso acabou.
Isso foi uma decisão do Supremo e hoje a doação se faz pela pessoa física ou
financiamento público. Portanto, se formos olhar em termos de legado, não
exclusivamente da Lava Jato, é que temos uma melhoria do financiamento do
sistema político.
BBC News Brasil - O sr. já disse que o
lavajatismo ou a Lava Jato foi a mãe do bolsonarismo. Eu queria entender como
foi essa gestação, na sua opinião?
Mendes - Se nós olharmos, a Lava Jato tinha
candidato e tinha programa no processo eleitoral. E atuou, inclusive, para
perturbar o Brasil em termos institucionais. Veja, por exemplo, no caso da
Presidência do presidente Temer, aquela operação ligada à JBS e ao procurador
Janot.
Ali notoriamente se tratava de uma iniciativa
para derrubar o governo. Era uma ação política em que se dizia que o presidente
da República estava tolerando corrupção do ex-presidente da Câmara Eduardo
Cunha.
Ali se via que era não só uma ação policial,
mas uma ação política. Depois a Lava Jato atua na prisão do Lula. Depois,
prestes à eleição, divulga o chamado depoimento ou delação do Palocci, tentando
influenciar o processo eleitoral, depois o Moro vai para o governo Bolsonaro…
Portanto eles não só apoiaram como depois passam a integrar o governo
Bolsonaro. Tudo isso indica uma identidade programática entre o movimento e o
bolsonarismo.
BBC News Brasil - Cientistas políticos dizem
que o bolsonarismo se alimenta do antipetismo. O senhor já fez algumas
declarações emblemáticas sobre o PT, como quando disse que o partido instalou a
cleptocracia no comando do país e quando barrou posse de Lula como ministro da
Casa Civil. O sr. se consideraria um dos pais do sentimento anti-PT?
Gilmar Mendes - Não, de maneira nenhuma. Vocês
que acompanham a mídia brasileira sabem que eu tive um papel bastante crítico
em relação ao PT. Eu ecoei em relação a vários atos do PT reservas ou
manifestei a necessidade de resistência. E também fiz várias críticas a todo
esse modelo de financiamento que já aparece no mensalão. Não me parece que haja
nada de anormal aqui. Eu venho de uma formação liberal e guardava reservas em
relação a isto.
Agora, também sempre reputei, pelo menos no
início, que a Operação Lava Jato cumpria um papel de combate à corrupção
pontual que se desenhava, mas a partir do momento em que ela se converteu num
movimento político e passou a usar o processo-crime para definir eleições, eu
passei também a fazer críticas. Como fiz também críticas às prisões alongadas
de Curitiba.
Então, se existem críticas ao PT, ele parte dos
segmentos os mais diversos, mas o lavajatismo o envolve de maneira particular.
O lavajatismo pretende se tornar um tipo de corrente política, portanto, de
longe, não é o papel que eu desempenhava.
BBC News Brasil - Mudando de assunto, vamos
falar de pandemia. O Brasil alcançou ontem a maior média diária de mortes desde
o início da crise. Nós vimos recentemente o caos em Manaus, com a falta de
oxigênio. Por outro lado, a vacinação começou. Qual a sua avalição da gestão
que o governo federal fez dessa pandemia?
Mendes - Temos que olhar sob uma perspectiva
múltipla. Tenho impressão de que na relação entre o governo federal e as
unidades federadas, Estados e municípios, isso teve um certo caráter caótico,
inclusive com as mensagens que se passavam de que era possível ter um
tratamento precoce, e aí vem todas essas questões que se conhece, uso de
cloroquina, ivermectina, que eram difundidas pelo governo.
Temos um número muito impressionante de mortos,
200 mil. Isso talvez pudesse ter sido melhor encaminhado, se tivéssemos uma
melhor coordenação entre os entes. Não tivemos e isso ocorreu por algumas
crenças que dominavam o governo federal. Isso fica evidente.
Mas, de alguma forma, conseguimos coordenar o
processo. E o papel do Supremo foi bastante marcante ao definir
responsabilidades e dizer que a União não poderia interferir nas ações
sanitárias dos Estados e municípios. Acho que isso foi bastante positivo. E
agora estamos diante desse segundo dilema que é a da vacinação. Já temos 5
milhões de vacinados, mas faltam materiais. Temos que fabricar mais, importar
mais, uma vez que o sistema do SUS de imunização parece ser muito efetivo.
BBC News Brasil - Justamente essa decisão do
Supremo tem sido usada pelo presidente Bolsonaro como argumento para dizer que
governo federal não poderia ter feito mais pelo Estado do Amazonas e por
Manaus, especificamente. Como o sr. responde a essa afirmação?
Mendes - Acho que é um equívoco. O Supremo
nunca impediu a União de atuar. O que o Supremo impediu é que a União
tumultuasse as políticas que estavam sendo utilizadas. Dando um exemplo: muitas
vezes a Presidência baixava decretos dizendo que algumas atividades eram
essenciais e não podiam ser restringidas, como atividades de culto, de comércio
e lotérica, atividade de prestação de serviços de cabelereiro e barbeiro.
O Supremo disse que, se essa matéria estiver
sob a responsabilidade de Estados e municípios, são eles que devem identificar
as atividades essenciais. Portanto, fez um tipo de bloqueio das ações do
governo que tumultuavam a política do isolamento social.
A questão de Manaus é toda peculiar. Lá chegou
a faltar oxigênio e o que se diz é que o governo e a prefeitura teriam avisado
ao Ministério da Saúde da gravidade da situação lá e não teria havido a
necessária atenção. Há uma investigação do Ministério Público sobre isso e um
inquérito envolvendo o ministro (Eduardo) Pazuello, da Saúde.
BBC News Brasil - Qual a sua opinião sobre a
indicação da deputada Bia Kicis para o comando da Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara? Ela é uma das investigadas no inquérito das fake news do
Supremo por supostamente usar o orçamento de sua cota parlamentar para espalhar
mensagens a favor de manifestações que pediam o fechamento do STF. O que essa
indicação pode significar para a relação do STF com o Congresso?
Mendes - Eu prefiro não responder a essa
pergunta porque acho que a Câmara saberá bem encaminhar a temática.
BBC News Brasil - Sobre o caso das
"rachadinhas", o sr. suspendeu julgamento no Órgão especial do TJ do
RJ sobre a competência para o julgamento do envolvimento do senador Flávio
Bolsonaro. Quando o Supremo deve decidir a competência para julgar esse
processo?
Mendes - Isso deve acontecer ainda nesse
semestre.
BBC News Brasil - Nos últimos meses, Bolsonaro
editou quatro decretos que flexibilizam o acesso a armas no Brasil. Qual sua
opinião sobre uso de decreto para modificar regras sobre porte de armas?
Mendes - Vamos aguardar. Esse é um tema sobre o
qual o Congresso deve se debruçar. Já houve algumas discussões nesse âmbito no
Congresso Nacional. Inclusive, suspensões de medidas tomadas pelo Executivo e
certamente esses decretos lançados pelo presidente serão submetidos ao Supremo.
Algum partido de oposição deve pedir a análise dessa temática.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56077269
Nathalia Passarinho - @npassarinho
Da BBC News Brasil em Londres
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